SESSÃO ESPECIAL 2

RAQUEL GERBER

 

AbÁ

Direção: Cristina Amaral e Raquel Gerber (4min, sonoro, cor, 1992, 16mm > digital)

Sinopse: Um ato de devoção às energias cósmicas, conhecidas pelos africanos através da religião e da cosmogonia.

 

Créditos

Roteiro: Raquel Gerber

Produção Executiva: Ignacio Gerber

Fotografia: Raquel Gerber, Hermano Penna e Pedro Farkas 

Montagem e Edição de Som: Cristina Amaral

Som: Lia Camargo

Produção: Rose Ferreira

Créditos: Rudi Böhm, Ilimitada

Montagem dos Negativos: Benê de Oliveira

Laboratórios: Álamo e Líder

Ôrí

Direção: Raquel Gerber (91min, sonoro, cor, 1989, 16mm > digital)

Sinopse: Sobre um panorama de um documento – história sobre os Movimentos Negros no Brasil (anos 70/80), ÔRÍ conta a história de uma mulher Beatriz Nascimento, historiadora e militante, que busca sua identidade através da pesquisa da história dos “Quilombos” como estabelecimentos guerreiros e de resistência cultural, da África do século XV ao Brasil do século XX. Esta pesquisa revela a História dos povos bantus na América e seu herói civilizador Zumbi dos Palmares.

 

Créditos

Roteiro e Direção de pesquisas: Raquel Gerber 

Narração: Beatriz Nascimento

Direção de Fotografia: Hermano Penna

Som Direto: Francisco Carneiro, Lia Camargo, Walter Rogério

Montagem e Edição: Renato Neiva Moreira 

Assistência de Montagem: Maria Cristina Amaral 

Música original: Naná Vasconcélos

Arranjos e execução: Naná Vasconcélos,Teese Gohl 

Produção: Angra Filmes, Fundação do Cinema Brasileiro 

Produção Executiva: Ignácio Gerber

NOTAS SOBRE ORÍ - O MOVIMENTO DA

IMAGEM AO RITMO DA MACUMBA*

 por Gustavo Maan  

 

(…)

Logo de início, Ôrí faz questão de nos informar sua localização. Beatriz, que narra em primeira pes- soa grande parte do filme, demarca o seu interesse em estar não em uma margem ou outra do Atlânti- co, mas em seus entremeios. Não é um filme portan– to de substância ou de essência, mas de movimento e relação.

Pretendendo falar sobre o movimento negro das décadas de 70 e 80, levantando uma discussão so- bre a influência basilar dos africanos na edificação do país, o filme foge de um esquema expositivo e demasiadamente descritivo para construir uma his- tória baseada nos sentidos. Passamos por bailes de soul music, pelos ensaios da Vai-Vai, reuniões fun- dadoras do MNU, manifestações, saídas de Iaô, e nenhum desses lugares é em momento algum definido enciclopedicamente. O baile, o terreiro, a escola de samba e o movimento político são dispostos como em um sistema. Nenhum ponto se explica sem o ou- tro, tudo só existe a partir da relação.

Nesse sentido, temos uma abordagem que vai em direção contrária a de uma idolatria da pureza. O que importa, justamente, é a capacidade de criar vínculos — esse é o legado da tradição. Muito em– bebido de outras epistemologias africanas, princi- palmente aquelas provindas dos povos Bantus de Angola e do Congo, Ôrí celebra a capacidade de so- brevivência, e não de preservação de uma cultura. Essa diferenciação é importante se levarmos em conta que sobreviver é necessariamente se manter vivo, ativo, e consequentemente, em movimento.

Ora, se desde o início somos nós uma profusão de elementos — carregamos em nosso corpo-lama*** essa ideia — como podemos inserir nesse debate uma ideia de pretensa pureza? A interação entre a terra e a água está longe de ser pura, sendo o que realmente importa desse contato a contaminação mútua estabelecida: um pouco de água na terra, um pouco de terra na água. Quando vejo uma imagem de Santa Bárbara em um terreiro, está ali não a santa ca- tólica, nem mesmo Iansã “disfarçada”, mas sim uma amálgama desconcertante entre essas duas figuras. 

 

Essa é a macumba. Não a macumba como designa-
ção genérica de um culto religioso sincrético, mas ela
como uma categoria de pensamento, uma maneira
de se posicionar frente ao mundo. É a possibilidade
de encarar as coisas como coisas, e nesse sentido
preservar sua multiplicidade ontológica.

Em uma cena específica, Ôrí parece operar de
forma magistral o que seria um cinemacumba. Estamos na Serra da Barriga e escutamos o historia
dor Joel Rufino dos Santos proclamar um discurso na inauguração do memorial Zumbi dos Palmares.
Esse plano é invadido por uma conclamação à
Ogum que dá início a uma fusão em que uma recém feita Iaô do orixá guerreiro, em transe, vem em direção à câmera. No som, escutamos agora a sinestésica trilha sonora composta por Naná Vasconcelos. O bradar do terreiro é o disparador para uma sequência retrospectiva, em que passamos por diversas palmeiras, pelas cenas das manifestações em São Paulo, pelos seminários da Quinzena do Negro, e que culminam em diversos planos dos rostos de figuras específicas como Hamilton Cardoso, Eduardo de Oliveira e Oliveira e Beatriz Nascimento. 

 

 

 

Nesse momento temos a mediação entre uma

coletividade política (o movimento negro) e uma subjetividade individual (Beatriz, Eduardo e Hamilton), passada pelos elementos naturais (as folhas de palmeira relacionadas à Ogum) e intermediadas por figuras atemporais que surgem por meio de um discurso histórico (Zumbi) ou pelo transe (Ogum).

Não se trata aqui de uma simples concatenação de planos, mas a construção de um pensamento por meio de imagens e sons que é possível graças a um entendimento de que todas essas substâncias só existem em profusão umas às outras. É o vislumbre de uma vida política que necessariamente passa pelos elos que unem a individualidade da coletividade, o presente dos seus passados e futuros.

A montagem opera um verdadeiro transe, ofertando o corpo fílmico como intermediário de uma infinidade de pessoas e discursos. É um movimento contra a fragmentação colonial, que procurou e ainda procura com todas as forças quebrar essas rede de conhecimento que conjugam tempos passados a fim de uma insurgência no presente. Vemos em Ôrí uma aposta radical pela dialeticidade, em que se faz questão de manter a imagem no seu lugar por excelência: em movimento.

O filme não poderia ser encerrado de maneira mais precisa do que com a proclamação de um poema, escrito por Beatriz, e direcionado à Zumbi. Nele vislumbramos a possibilidade arrebatadora de uma história transatlântica, que retira das pessoas o peso esmagador do sujeito individual moderno e as devolve seu lugar no mundo e na história. O exercício de uma metodologia forjada entre oceanos, giras e sambas, acompanhando o mundo em seu movi- mento sem fim.

Para ti, comandante das armas de Palmares Filho, irmão, pai de uma nação.
O que nos deste? Uma lenda, uma história ou um destino?

Oh Rei de Angola Jaga! Último guerreiro Palmar

Eu te vi Zumbi, nos passos e nas migrações diversas dos teus descendentes

Te vi adolescente sem cabeça e sem rosto nos livros de história

Eu te vejo mulher em busca do meu eu
Te verei vagando, oh estrela negra!
Oh luz que ainda não rompeu
Eu te tenho no meu coração, na minha palma de 
mão verde como Palmar

Eu te espero na minha esperança do tempo que há de vir.

*O texto na íntegra foi publicado originalmente na revista digital Multiplot, em que o autor também escreve sobre o filme Mito e Metamorfose das Mães Nagô (1981) de Juana Elbein dos Santos. Link para acesso: http://multiplotcinema.com.br/2022/09/o- -aviltamento-da-macumba/

** A lama faz referência, nas palavras do autor, ao “processo de criação do homem Nagô — quando Oxa– lá, depois de diversos testes, elegeu a lama de Nanã Buruquê como a matéria prima de toda a humanida- de”. Trecho presente na versão original do texto. 

TUDO NO MUNDO AFRICANO É MACUMBA*

 

O texto abaixo é composto de trechos de falas de Raquel Gerber, extraídos de entrevista realizada por Bernardo Oliveira, Ewerton Belico e Gustavo Maan, publicada na revista digital Multiplot. 

 

“(…) até hoje eu acho que o Brasil não tem ne-
nhuma consciência dos aportes, das civilizações que vieram pra cá. De como é que elas interagiram, 
como elas recodificaram essa nação, entendeu?
Porque você vê, a Beatriz desenvolve um conceito revolucionário como o Quilombo de Palmares sendo a primeira verdadeira nação brasileira, porque é ali que estavam presentes todos os componentes, os itens formadores já estavam lá. Um encontro entre culturas, outra forma de fazer economia, enfim, aí você já pode desenvolver outro assunto, de como é que Palmares foi a primeira verdadeira nação
brasileira ainda quando o Brasil era uma colônia portuguesa. A primeira, a verdadeira independência nacional, foi pela criação da nação palmarina.

Então, esse filme Orí começa já em 1973. Quando eu fiz o meu primeiro ensaio cinematográfico que se chamava Ylê Xoroquê. Porque eu queria… a minha tese, que eu defendi na USP e que finalizei em 1975, já tratava do conceito fundante do filme Ôrí, que é essa relação entre a identidade individual e a identidade coletiva. E como é que o coletivo afeta o indivíduo, o seu psiquismo, etc. E como que o indivíduo
se coloca também diante da história da sociedade e 
da coletividade?

Tinha esse aspecto cronológico de dividir a parte inicial do filme que foi realmente a Quinzena do Negro. Na verdade, todo aquele momento de tudo o que aconteceu. Estava muito ligada à USP, à Faculdade de Ciências Sociais, que era a minha origem também. Era dentro dos corredores da universidade que
aquele movimento negro surgia. Porque foi também 
o momento em que, vamos dizer assim, já no final da Ditadura Militar, que começaram a se constituir os partidos políticos, e quem começou isso foram aqueles negros que estavam na universidade, que estavam cursando Ciências Sociais.

Então, Ôrí tem essa origem dentro da universidade e que é a própria universidade onde eu também me formei. E então, enfim, o filme tinha que ter logo de cara a universidade, onde eu encontrei a Beatriz. Ali era o foco. Não é à toa que, na saída da universidade, a polícia já estava lá nos esperando, ali realmente começou a fervilhar alguma coisa. Bobos eles não eram. Eles sabiam que ali tinha um encontro de estudantes acontecendo. E também a origem do meu trabalho foi dentro da USP.

Eu tomei um grande impacto diante da Beatriz, diante da pessoa humana que ela era, sua beleza, sua dignidade, sua cultura e a expressão verbal maravilhosa dela. Era uma grande poeta! E o tema dela era esse: “Como ela, como uma mulher do século XX, vai se identificar com a história da escravidão?” Então, eu tenho que me ver como indivíduo
dentro de outro tipo de conceito de luta. Então, já era a temática da descolonização.

A teoria que Beatriz desenvolveu já era a da descolonização. E aquilo que eu estava procurando a partir do cinema Glauberiano, do que o Glauber me ensinou sobre o cinema, era também desenvolver uma linguagem cinematográfica, que pudesse trazer o íntimo do ser humano como expressão, como expressão do êxtase, como expressão da luta.

Porque eu iniciei em 1977 e em 1978 nasceu
o Movimento Negro Unificado. Então eram todas formas associativas e comunitárias, dentro de um conceito de coletividade, e cada indivíduo ali acaba se posicionando sobre o que é a consciência negra.
Para um era uma coisa, para outro era outra coisa. Então eu conheci a Beatriz, mas quando nós saímos 
dessa filmagem, fomos presas.

Aí passei o ano de 1978 traumatizada, escondendo tudo que tinha filmado, morrendo de medo da polícia, mesmo sem nunca ter nada feito de mal. E aíapareceu essa  oportunidade de ir para África, com a
orientação do professor Mariano Carneiro da Cunha. E aí, na África, eu me libertei de todo esse sofrimento que eu passei. Eu retomei meu trabalho.

O Cláudio Canzian me emprestou uma Bolex
Repórter, e eu a usei pra carregar os meus cassetezinhos e eu filmei na África com aquela Bolex Repórter, com os meus cassetezinhos entendeu? E fui recuperando a confiança em prosseguir com esse filme. Foi aí que eu resolvi procurar a Beatriz, para ver o que nós poderíamos fazer em comum, porque aquilo que eu queria fazer no cinema ela estava fazendo no campo da historiografia dos quilombos. Nessa relação entre ela como indivíduo e a história 

 

de Zumbi de Palmares, que era a história dos qui- lombos, como resistência cultural ao colonialismo.

Aí nós nos encontramos umas duas vezes no Rio, e também umas duas, três vezes em São Paulo. Nós gravamos essas entrevistas e essas interlocuções. E aí eu fiquei um ano e meio editando esse som, pra ser essa Beatriz fluente que ela é no filme. O que ela não é, na verdade, nunca foi, porque ela era que nem Glauber. Ela começava a falar de um assunto e daqui a pouco ela já estava em outro e outro em outro. Eles eram multiétnicos, multilinguistas entendeu? Fica- vam falando cinco ou seis línguas ao mesmo tempo.

Claro que o que ela me falou se refletiu também nas captações finais de imagem, porque eu encon– trei a Beatriz só em 1980. E eu já tinha começado a filmar em 1977, depois em 1978. Eu parei um tempo. Aí que eu fui parar em 1978 e aí em 1979. Aí que eu armei a produção do filme. Fui procurar a Beatriz, mas já tinha algumas coisas filmadas. Já tinha um roteiro de trabalho estabelecido. Claro que ela foi jo- gando muitas luzes pra mim, porque, por exemplo, essa ideia das favelas do Rio de Janeiro serem qui– lombos do século XX, essa ideia, vamos dizer, dos encontros de escola de samba serem quilombos, tudo isso são conceitos dela.

Eu estava preocupada em ver como é que a cons- ciência dos grupos e dos meus personagens, estava evoluindo através do tempo. Mas ela me deu o foco no cotidiano negro. Ela dizia que é no cotidiano você vai encontrar os elementos fundantes. Na família, no cotidiano religioso, no cotidiano das discussões. Nas universidades e nesses campos de cotidianos que ela me instruiu a adentrar.

E tudo isso, eu acho que é um trabalho que é co- letivo, entendeu? Têm muitos fotógrafos, o grande montador Renato Neiva Moreira, a Cristina Amaral com a gente nem precisa falar. Vocês sabem quem é a Cristina, o amor que ela teve por tudo, o amor que ela tem por tudo que ela faz, entendeu? Ela já entrou quando o filme já estava todo cortado em 1000 pedacinhos. Ela catalogou tudo. Ela ajudou imensamente a conseguir construir e a encontrar cada trecho que precisava para cobrir esse tema ou aquele tema. Nós filmamos juntas porque a questão da imagem era muito importante, porque não tinha imagens, não havia como construir imagens. Então a gente até trabalhou muito com material estático. Então, toda essa concepção de criar imagem em movimento, em cima de material estático, eu fiz isso junto com a Cristina, entendeu? A gente escolhendo as imagens e os enquadramentos. 

 

A gente viveu, acho que um momento até idílico sabe, porque a gente acreditava em tudo o que a gen- te estava fazendo. A gente acreditava demais, tinha aquilo, era quase uma religião para nós, de fazer esses trabalhos de documentar essas coisas. Era uma ma- neira da gente ajudar a evolução daquele momento histórico que a gente saía, da obscuridade, da ditadura militar, do sofrimento que tantos viveram naquilo. En- tão, era quase que um renascimento para nós, sabe? Por isso que o filme ganhou esse tom um pouco épico. Eu acho que é um filme épico. Porque era assim, a gente estava ali num crescendo de uma luta, de uma vontade, de uma melhoria do mundo, do amor entre os homens. A gente estava acreditando naquilo tudo. Hoje o cinema já traz um peso muito maior, de um so– frimento muito prolongado. Naquela época também foi um sofrimento prolongado, mas naquele momento teve uma abertura ali, teve uma abertura para uma coi- sa diferente.”

* A entrevista na íntegra pode ser lida no link: http://multiplotcinema.com.br/2022/09/tudo-no- -mundo-africano-e-macumba-entrevista-com-ra- quel-gerber