SESSÃO ESPECIAL 1

GUSTAVO DE MATTOS JAHN / DISTRUKTUR

 

“Quando o azul terminar de empalidecer, adormecerei no assombro de uma descoberta estranha e perigosa” (Annie Ernaux, no livro La femme gelée.

Tradução: Antonio de Macedo Soares Guimarães)

Todos os rios se chamam Nilo 

(Tous les fleuves s’appellent le Nil)

Direção: Gustavo Jahn (França. 2021. 8min)

Sinopse: Ao caminharmos ao longo das margens de um rio, somos atravessados por imagens brilhantes refletidas na su- perfície verde da água. A paisagem nos transforma, enquanto caminhamos por ela e a transformamos em troca. Filmado em filme negativo colorido de 16mm, o ma– terial foi revelado em processo cruzado, transformando as imagens negativas em imagens positivas com cores quentes e suaves. O filme foi realizado durante uma residência na Brazza Art Residency em Châteuneuf-sur-Charente, em maio e junho de 2021. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  




 

 

 

 Cine-alfabeto:

A. (6min, silencioso, cor, 2021, 16mm > 16mm) +
O. (3min, silencioso, colorido, 2019, 16mm > 16mm) +
P. (3min, silencioso, colorido, 2022, 16mm > 16mm)

Direção: Gustavo Jahn (França-Brasil)

Sinopse: Cápsulas de espaço-tempo, expe- riências únicas de duração, os filmes são projetados em cópias silenciosas 16mm, em loop. A série será completa com as 24 letras do alfabeto. 

 

Filme de Pedra

Direção: Melissa Dullius e Gustavo Jahn (Alemanha-Brasil. 2021. 9min. Desde 2012)

Sinopse: Quem tem ouvidos para ouvir a voz das pedras? 

 

 

 

 

Oráculo

Direção: Melissa Dullius e Gustavo Jahn (Brasil. 2021. 61min)

 

Sinopse: Oráculo é um método: é a voz da pergunta e da resposta. Um filme dividido em 6 cenas, totalizando 60min. Duas cenas mitológicas mostram a morte e o renascimento de um homem. Uma cena mostra um homem caminhando sob uma ponte, revisitando um dia que o marcou. Uma cena abstrata com linhas curvas e formas de montanhas azuis. Uma cena musical (número): uma menina canta e grava ela mesma em seu quarto. Uma cena do outro lado do oceano, onde a garota se torna uma mulher. Entre tudo, o oceano. Um filme com 7 cortes. Tudo colorido.

Créditos
Elenco:
Juarez Nunes, Alice Bennaton, Fernando Goulart Jahn, Aline Maya, Luana Raiter Roteiro, Direção, Produção: Melissa Dullius e Gustavo Jahn
Cinematografia, Som, Edição: Gustavo de Mattos Jahn
Mixagem de som: Benoît Héry
Trilha sonora: Sonsdecura
Assistentes: Diego Canarin, Pedro MC, Reno Caramori Filho, Oriol Sánchez

A natureza do/no cinema de Gustavo Jahn

“Onde eu nasci passa um rio

Que passa no igual sem fim

Igual, sem fim minha terra

Passava dentro de mim

Passava como se o tempo

Nada pudesse mudar”

 

Caetano Veloso (1967)

Um rio verde flui suavemente. O sol reflete seu brilho na superfície das águas. O vento trêmula as folhas das árvores. Pétalas caem no leito e são le- vadas pelo fluxo da correnteza. Troncos e ramos emolduram a cena. A lua paira no céu ao entardecer. Pássaros levantam voo. Um banco de praça vazio onde não se vê vivalma. O silêncio impera. Essas são algumas das primeiras imagens que se imprimem em nossas retinas vindas do filme Todos os rios se chamam Nilo (16mm, 8min, 2021) de Gustavo Jahn, exibido durante a sessão no Festival 1666, na cine- mateca do MAM do Rio de Janeiro.

A primeira sensação é que estamos diante de uma investigação sobre a irredutível passagem do tempo. O fluxo é um tema que perpassa vários dos filmes. Em A. (16mm, 6min,2021), por exemplo, vemos um felino em toda sua graça, encarando a objetiva enquanto descansa enrolado nos cobertores de uma cama. Já em P. (16mm, 3min, 2022) vemos a paisagem clichê da Torre Eiffel ser convertida em luzes estroboscó- picas perdidas no negrume da noite. Em O. (16mm, 3min, 2019) imagens crepusculares em travelling, em tons terrosos de laranja e vermelho, parecem lenta- mente se converter em um quadro de Rothko.

Esse cine-alfabeto em construção (pois a ideia de Jahn é dar continuidade ao Alfabeto em novos fil– mes) forma uma tríade que pode compor diferentes interpretações e leituras. A letra “A”, inaugural por excelência, nos remete à onomatopéia de espanto, que, como diria a poeta Orides Fontela, é o campo comum dos filósofos e dos poetas1. Já a letra “P” nos remete tanto às palavras “Paris” quanto “Pai- sagem” ou “Panorâmica”, gêneros da tradição da pintura com os quais Jahn parece estar dialogando. “O”, por sua vez, remete à forma circular do infinito, o loop ou o eterno retorno do tempo circular das es- tações do ano. Reagrupadas em ordens diferentes podem formar uma interjeição de susto ou mesmo a sigla POA, Porto Alegre, cidade natal do diretor. Já Filme de Pedra (16mm, 9min, 2012) parece nos dar outro tipo de lição: as aulas silenciosas das pedras, que nas palavras de João Cabral de Melo Neto, ocor- re “(de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la”. Este grupo de filmes parecem tanto in– vestigar a “língua” do cinema como refletem a ori- gem ou uma certa “natureza” do diretor.

Pensando em origens, vale ressaltarmos que a tendência de filmes em que “nada” acontece e que investigam a linguagem do cinema já vêm de uma longa tradição do cinema experimental. Basta lembrarmos do filme Zorns Lemma (1970 de Hollis Frampton que explora o “A, B, C” do/no cinema e dos filmes de Andy Warhol: Kiss (1963), Eat (1964) e Sleep (1966), os quais o diretor afirmava fazer ape– nas “pelo gosto” e pelo mero prazer de ver2. Jonas Mekas, um dos papas do cinema de vanguarda, fun- dador da Anthology Film Archives de NY percebeu, já em seu tempo, a presença de dois tipos tropos dominantes na cena experimental: o do ralentamen- to e da aceleração3Os filmes observacionais de Jahn, portanto, po– deriam ser localizados nessa primeira tendência ou tropo visual: o da desaceleração. Semelhante aos filmes de Andy Warhol eles convocam a contem– plação meditativa e calma. O loop, recurso também bastante utilizado pelos cineastas experimentais norte-americanos, permite que a cada visada perce- bamos novos detalhes nas imagens e novas elucu- brações podem assim emergir. Como na máxima de Hieráclito: “nunca entramos duas vezes no mesmo rio.” Como um rio, a imagem pode parecer a mes- ma, mas a cada instante ela se alterna, se move sem se mover. O boredom ou o ennui logo se convertem em spleen -, ou seja, em uma experiência de mara- vilhamento propiciada pelo tédio, esse “pássaro que choca os ovos da experiência”4. Seria esse o pássaro da canção ao fim do filme Oráculo (16mm, 61min, 2021) que leva a tristeza embora?

Os filmes de Jahn não parecem se limitar apenas a um diálogo com os seus predecessores do cine- ma experimental. A questão da passagem do tempo sempre foi uma grande preocupação de artistas, po- etas e filósofos desde a modernidade. Como fixar o efêmero, o instante pregnante, o fugidio e o infinita– mente lábil em uma tela? O saudoso cineasta fran- co-suíço Jean-Luc Godard, que nos deixou esse ano, já afirmava que os irmãos Lumière foram os últimos impressionistas5. Mais do que se configurar como a “evolução” de uma tecnologia, o cinematógrafo foi fruto do mesmo ímpeto humano que pautou quase cinco séculos de exploração da perspectiva da vi- são pelas artes visuais. Assim, as cenas de A., em que vemos o homem deitado na relva olhando uma folha bicolor e o piquenique à beira do rio nos pare- cem dignas de um quadro de Monet ou Renoir. Já as botas desamarradas na grama lembram o famoso quadro de Van Gogh, O par de sapatos (1886), que, para Heidegger, não se tratava apenas de represen– tação ou cópia do universo aparente mas sim desve- lava o tempo e a “essência geral das coisas”6.

A filosofia também não é estranha ao diretor. Em 2019, em entrevista para a Revista Beira7, Melissa Dullius (parceira criativa de Jahn há mais de um década e também co-diretora de Oráculo) e Gustavo Jahn revelaram ter o filósofo Bergson como uma grande referência. No livro Matéria e Memória (seminal para os teóricos do cinema), o filósofo afirma resumindo muito a grosso modo que uma imagem só pode ser percebida se auxiliada pela duração e pela memória. Ela seria feita justamente no interstício ou na distância entre o objeto material, a percepção pura imediata e a percepção interior “virtual”.

Desse modo, o longa Oráculo parece desdobrar de maneira visual essas investigações filosóficas.

As personagens de Oráculo estão presas num
vortex de tempo, numa paisagem onde construções se assemelham a ruínas, onde futuro e passado se confundem. Na duração estendida da mise-en-scéne, a distância que separa os tempos diminui, convergindo-os para o mesmo ponto: o quarto da adolescente (a mesma que, subitamente, vira uma 
mulher na cena da praia). O quarto parece figurar como um dispositivo cênico em outros filmes do diretor. Ele está presente também em Muito Romântico (16mm, 72min, 2016), longa anterior também co-dirigido com Dullius, em que o cômodo serve de palco para diferentes momentos da vida de um casal/duplo e opera uma espécie de teletransporte no tempo-espaço. O quarto parece ser o próprio oráculo, local onde se vislumbra passado, presente e futuro de modo simultâneo.

Enquanto os humanos estão na maioria das vezes deitados, acachapados e oprimidos pela passagem do tempo que os aplaca e destrói corações, as montanhas e o mar são (ou parecem ser) sempre os mesmos. A temporalidade da natureza possui uma escala de grandeza infinita, difícil de ser mensurada pela percepção humana. A natureza é fluída mas também nos parece, paradoxalmente, imutável. No curso que ministrou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 2019, Jahn afirmou que a película fotoquímica é vegetal, mineral e também animal.
“Ela tem uma composição muito complexa e tudo aponta um pouco para vida mineral, para coisas 
que são muito sensíveis”. Os filmes de Jahn não são apenas filmes sobre a natureza, mas também filmes sobre a natureza do filme: tempo, duração, memória.

 Nos tempos acelerados e interconectados das redes sociais, no qual a virtualidade se tornou ubí- qua, o cinema contemporâneo parece ter levado os dois movimentos do cinema de vanguarda aos seus estertores. De um lado o cinema “veloz e furioso” de cortes ultrarrápidos e do uso extensivo de efeitos de pós-produção de Michael Bay e, em contrapartida dialética, do outro lado os slow movies de cinema de autor de Tsai Ming-Liang, Lav Dias, Apichatpong e Béla Tarr8. Uma curiosa cena também se desdobra dessa segunda vertente da lentidão.

No campo de interseção entre artes plásticas e cinema vemos um retorno do uso da tecnologia analógica, do filme fotoquímico e de métodos arte– sanais de produção de imagens, a chamada “poética da obsolescência”9. Entre muitos nomes de artistas célebres podemos destacar os brasileiros Rosânge– la Rennó, Jonathas de Andrade, Ana Vitória Mussi e Ana Vaz, a italiana Rosa Barba, a inglesa Tacita Dean, o norte americano Bill Morrison, o argentino Andrés Denegri, a mexicana Azucena Losana, os portugue- ses João Maria Gusmão e Pedro Paiva, o austríaco Peter Tscherkassky, e o japonês (radicado no Brasil) Tetsuya Maruyama. Poderíamos colocar a produção de Gustavo Jahn e do coletivo Distruktur dentro des- sa “cena” que vislumbra no passado e na calma ca- dência das horas, quiçá, um futuro alternativo para o cinema.

Bárbara Bergamaschi Novaes

Realizadora e pesquisadora. Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, com tese sobre o cinema de Peter Tscherkassky.

1 “[…] o saber poético se dá como uma ‘cegueira exata’: intuição, pensamento selvagem. A poesia, claro, não apresenta provas: isto é tarefa para a filosofia. Mas os filósofos — os criativos mesmo — também partem de intuições, e é a poesia que dá o que pensar. (…) Há muita poesia na filosofia, sim. Não poesia didática — como a dos pré-socráticos — mas poesia como fonte que incita e embriaga. E da filosofia na poesia já falamos, só que é ‘filosofia’ que se ignora, que canta — que dá nervo aos poemas e tenta entrar onde o raciocínio não chega” (FONTELA apud LAVELLE e BRITTO, 2018, p. 13)

2  Para mais ver o livro de Jonathan Flatley “Like Andy Warhol.” University of Chicago Press,2017.

3  No artigo publicado em 27 de agosto de 1964 na revista Village Voice, Mekas afirma que o cinema experimental de seu tempo era marcado por dois extremos: “o lento e o veloz, Andy Warhol e Stan Brakhage” 

4 Me aproprio da expressão de Walter Benjamin, em seu ensaio O Narrador: “O tédio é o pássaro que choca os ovos da experiência. O menor sussurro das folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes.” (BENJAMIN, 2014, p. 221).

5 “O que interessava a Méliès era o ordinário no extraordinário, Lumière o extraordinário no ordinário. Louis Lumiére via impressionistas, era, portanto, descendente de Flaubert, e também de Stendhal, cujo espelho levou ao longo dos caminhos. (…) Lumiére era o último pintor impressio- nista… um contemporâneo de Proust” (GODARD apud AUMONT, 2011, p. 27).

6  Martin Heidegger. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Editora 70,p. 27–28.

7  Publicada em 30 de Agosto de 2019: disponível no link: https://medium.com/revista-beira/conversa-com-coletivo-distruktur-1a8ce609de26 

8 Erika Balsom em seu livro-ensaio sobre o cinema de James Benning, Ten Skies (2021, p .67), identifica que essa tendência se exacerbou no contemporâneo extrapolando do cinema experimental e transbordando até mesmo para o cinema comercial.

9 Termo cunhado por Thomas Elsaesser. Para mais ver: “Cinema Como Arqueologias das Mídias” publicado pela editora SESC-SP.